1b - Introdução ao livro IMITAÇÃO DE CRISTO - parte 2
Mais detalhes sobre esse indispensável manual de santidade
Esse post é continuação da parte 1 que publicamos AQUI.
Dessa vez, trago alguns trechos da introdução ao livro Imitação de Cristo publicado pelas Edições Loyola. Essa tradução da Loyola tenta trazer a linguagem do Imitação mais clara à nossa sociedade atual e é a utilizada pelo Frei Gilson nos seus comentários que vamos acompanhar por aqui. Se quiser adquirir o livro físico acesse: https://amzn.to/3s4J7LC
Vamos ao texto.
A Imitação de Cristo foi, durante muito tempo, um dos três livros do cristão, com o Pequeno Catecismo e o Paroquiano ou Livro de Orações. Pelo menos nas famílias cristãs, era um dos presentes "obrigatórios" na primeira comunhão, a exemplo do terço e, mais tarde, do... relógio. Contudo, às vezes sofria a sorte de muitos outros livros religiosos que envelheciam lentamente num canto da estante.
A partir dos anos 60, A Imitação desapareceu quase completamente das referências cristãs. O que é muito lamentável. Sem dúvida, foi prejudicada por razões que nada têm que ver com seu conteúdo. Durante muito tempo, só se conhecia a tradução francesa de Felicite de Lamennais (1782-1854). De resto, uma tradução admirável. Mas sua sina foi envelhecer como envelheceram a língua e sobretudo a expressão dos sentimentos dessa primeira metade do século XIX.
Mas, quanto aos fundamentos, a Imitação não envelheceu. Apesar de alguns acentos, de algumas expressões, ela continua impressionantemente atual.
O mais antigo manuscrito da Imitação que possuímos data de 1424. A obra é de autoria de um monge que se dirige a seus irmãos. Muitos reconhecem como autor da Imitação Tomás de Kempis (1380 ou 1381-1471), que escreveu de próprio punho, em 1441, um manuscrito que contém nosso texto, aumentado de alguns outros livros dos quais seria também ele o autor. É provável que jamais se chegue à certeza sobre este ponto. Mas a questão da autoria tem importância apenas relativa.
A Imitação de Cristo nasceu num pais de língua flamenga. Ela é um dos frutos de uma escola de espiritualidade chamada "Devotio moderna", nascida talvez sob o influxo das "beguinas" (mulheres que praticam a vida "religiosa" no meio do mundo a partir do século XIV, nas regiões renanas) e dos "irmãos da vida comum". Esta escola de espiritualidade chegou ao apogeu com os escritos espirituais do bemaventurado Henrique Suso, de Ruysbroek e de outros.
A imitação se divide em quatro livros:
I. Alguns conselhos úteis para a vida espiritual.
II. Conselhos para recolher-se em si mesmo.
III. A consolação interior.
IV. O Sacramento da Eucaristia.
O desenvolvimento dos Livros e Capítulos não segue uma lógica particular. Com frequência, o autor parece avançar por associações de palavras ou ideias: esta maneira aparece sobretudo no terceiro Livro, que toma a forma de um diálogo entre Cristo e o discípulo.
O quarto Livro é composto de três partes:
Capitulos I a V: Grandeza da Eucaristia e importância da comunhão frequente.
Capitulos VI a XII: Como se preparar para a comunhão ou para a celebração da Eucaristia.
Capitulos XIII a XVIII: Eucaristia e vida espiritual.
Mas mesmo neste caso o plano permanece muito vago e não se pode falar de uma progressão do pensamento. Os elementos são mais justapostos do que construídos.
A imitação deve ser absorvida em pequenas doses, e não é necessário partir do início para desenvolver toda a sequência (embora isso também seja legitimo!). Não há perigo de "perder o fio", já que o único fio é a interioridade. Basta deixar-se tocar e ser levado…
Poder-se-ia objetar que A Imitação foi escrita por monges. Este fato relaciona-se essencialmente com a época de sua composição. Tornar-se monge era quase o único futuro permitido aos caçulas da família: daí o grande número de monges…
A vida monástica era então o modelo quase exclusivo da vida espiritual: os leigos que no mundo queriam levar uma vida mais perfeita e evangélica não tinham outro recurso senão inspirar-se na espiritualidade monástica. Foi necessário esperar a Introdução à vida devota, de S. Francisco de Sales, para que surgisse uma espiritualidade diretamente adaptada à vida leiga. Agora todo cristão é chamado a viver uma experiência espiritual pessoal: o caminho da santidade não está mais reservado a um "estado de perfeição". Com algumas pequenas adaptações, cada qual poderá encontrar aqui o que lhe convém.
Hoje tende-se a acusar A Imitação de apresentar uma espiritualidade muito individual, para não dizer "individualista". Este é um ponto de vista frequentemente superficial, e um olhar de míope, que só vê e julga através dos limites, em vez de explorar os fundamentos em toda a sua profundidade. É verdade que hoje importa muito insistir nos valores comunitários do Evangelho. Mas nem por isso se deve esquecer que, em última instância, cada pessoa está "só diante de Deus". E nenhuma instância ou referência comunitária pode dispensar a conversão pessoal. Em todo caso, basta saber que A Imitação não pode dizer tudo sobre tudo e colher os frutos da experiência espiritual que ela nos oferece. Garanto que o resto nos será dado de acréscimo.
A Imitação de Cristo não é propriamente um "livro de piedade", nem um tratado de teologia espiritual (de teologia ascética e mistica, como se dizia outrora). É, antes de tudo, o testemunho de uma experiência espiritual vivida e partilhada. Sem dúvida, isso explica, em parte, o modo de composição da obra, que parece seguir antes o caminho das inspirações do autor que relata suas vivências. E é esse o principal interesse que hoje nos leva à Imitação: trata-se de uma experiência que é preciso ler.
Como seu titulo indica, ela nos convida a imitar Cristo. Este título, tirado do primeiro capítulo do primeiro Livro, exprime bem o essencial do que foi por muito tempo (e ainda hoje continua sendo) o segredo da vida espiritual e evangélica.
Para favorecer no discípulo o "seguimento" de Cristo, A Imitação sublinha impasses, denuncia ilusões tenazes, põe de sobreaviso contra tentações sutis. É natural que, de início, estranhemos a insistência com que ela volta, a tempo e contratempo, à renúncia de si mesmo, à "vaidade" das realidades do mundo, numa palavra, aos aspectos que hoje despertam certa suspeita por causa de seu caráter negativo, embasamento frequente das "alienações religiosas". É preciso reconhecer que, também neste ponto, A Imitação traz as marcas de seu tempo. Mas que ninguém se engane: apesar dessas críticas (que às vezes degeneram em álibis inconscientes), a experiência espiritual que ela nos fornece dá testemunho de um discernimento muito seguro.
Uma experiência espiritual autêntica leva inevitavelmente, cedo ou tarde, na esteira de todos os grandes mestres da espiritualidade, à escolha radical que se impõe a quem quer ser discípulo de Cristo. Não é possivel riscar do Evangelho o apelo à renúncia aos seres e até mesmo às coisas mais legitimas, e sobretudo, e isto é o mais difícil, à renúncia a si mesmo.
Em sua própria radicalidade, A Imitação abre caminhos de vida. Existe, por exemplo, um caminho mais vital para o cristão do que "a via real da santa cruz"? (Livro II, cap. XII)
E a redescoberta da Ressurreição como ponto focal da fé cristã não deveria apagar a Paixão, a cruz e a morte, que permanecem o caminho obrigatório da ressurreição e da glória.
Não há dúvida de que os apelos, repetidos sem cessar, são exigentes. Mas são apelos do próprio Evangelho. Nisso A Imitação constitui um eco do apelo que Jesus dirigiu ao jovem rico que havia observado fielmente todos os mandamentos desde a juventude: "Uma só coisa te falta" (Mc 10,21). É a cada um de nós que também "falta uma só coisa", essencial e vital: seguir Cristo de verdade. É claro que cada qual tem a "liberdade" de ir embora triste, guardando no fundo do coração um vazio que nada poderá preencher. Mas cada qual possui também a liberdade de dizer "sim" e de tomar o caminho que lhe é indicado, por mais austero e árido que seja, caminho que mostra nossa pobreza e indigência, nossa fraqueza e leviandade…
Cabe a cada um de nós reviver, com as características pessoais, a experiência espiritual que o autor nos consignou, à qual nos convida e cujos elementos e etapas essenciais ele soube registrar para nós. O discípulo é aquele que caminha atrás do Mestre, certo de sua presença, que segue seus passos, sem interrogações nem cálculos inúteis: "Vem e segue-me!".
Sobre alguns termos
O sentido das palavras evoluiu a partir do século XV e às vezes desviou-se a ponto de designar algo completamente diferente.
O tradutor dessa versão que citamos acima, precisou fazer algumas “transposições”. Aqui estão alguns exemplos delas:
Anima, alma.
Raramente se encontrará a palavra "alma". Com efeito, esta palavra comporta uma conotação desencarnada que não pode mais traduzir a realidade de seu sentido original. Com frequência, anima designa a própria pessoa: então recorri ao pronome pessoal apropriado. Outras vezes, anima evoca o coração da pessoa ou a sede da vida espiritual: então, preferi traduzir por "coração" ou "espirito". Nos diálogos entre Cristo e a anima fidelis, traduzi "alma fiel" por "o discípulo".
Caro, carne, Carnalis, carnal.
Hoje, a "carne" evoca quase exclusivamente o que se refere ao domínio do sexo, como na expressão "pecado da carne". Na época em que A Imitação foi escrita, este deslizamento de sentido, esta polarização excessiva e complexada sobre o sexto mandamento ainda não se haviam produzido. Traduzir por "carne" ou "carnal" era correr o risco de introduzir um contrassenso ou reduzir indevidamente o sentido do termo. Na tradição bíblica, "carne" se opõe a "espírito", como natureza se opõe a sobrenatural. É por isso que com frequência preferi os termos "natureza" ou "natural" para qualificar a situação do homem reduzido à simples "natureza" (o homem de "carne"), por oposição à obra da graça no plano sobrenatural.
Passiones, as paixões, Vitium, vicio.
Mais uma vez trata-se de palavras cujo decalque viu inflectir-se seu significado. Uma "paixão" em nossos dias designa a força irresistível da atração amorosa ou de algo que seja "apaixonante". Nada que ver com o que a tradição espiritual chamava de "as paixões". Quanto aos "vícios", a palavra não é mais empregada a não ser em expressões feitas, como "vício de fabricação" ou "vício de forma". Por isso, com frequência, traduzi "paixões" por "o mal que me impele" ou "que me arrasta" e Vitium por "o mal que está em mim". Estas circunlocuções têm a vantagem de corresponder melhor à experiência interior dos cristãos de hoje, especialmente os jovens.
Virtus, virtude
A palavra Virtus, virtude, com frequência, me deixou em dificuldades. Também ela, como as "paixões" ou os "vícios", não faz mais parte do vocabulário dos jovens cristãos de nossos dias. Falar de "virtudes" tem o sabor rançoso de algo superado. Hoje não se diz mais que se busca adquirir "virtudes", porque dá a impressão de um elemento secundário, como um peso a ser evitado. Prefere-se falar de "viver o Evangelho", de "colocar-se nas mãos de Deus". Não há dúvida de que se trata da mesma coisa. Mas para a sensibilidade de hoje a palavra "virtude" perdeu seu poder de evocação e não é mais mobilizadora. Contudo, na falta de um equivalente preciso e atual, com frequência a conservei, ainda que a contragosto. Mas é evidente que a realidade abarcada por esta palavra é fundamental, como por exemplo a humildade, "virtude" na qual A Imitação tanto insiste.
Pius, piedoso, Devotus, devoto
Devoto hoje de modo geral têm um sentido pejorativo. Os dicionários dão como sinónimo a palavra "carola": não precisa dizer mais nada. Da mesma forma, os substantivos Pietas, piedade e Devotio, devoção estão muito desvalorizados. Pius, pietas exprimem originariamente a qualidade de alguém cuja atitude para com Deus, ou o superior, ou o pai, é boa, reta, respeitosa, justa; fala-se assim de "piedade filial". Tive de dar-lhes equivalentes muito diversos, segundo a diversidade dos empregos. Devotus, devotio aplicam-se àquele que é votado, isto é, consagrado a Deus, a um homem, a uma obra. Deu a palavra "devotado", que evoca o "devotamento", nada mais tendo que ver com o primeiro sentido. Com frequência, traduzi esta palavra por "ardoroso" e "fervor". Quando se trata de um devotus, um "devoto", preferi "um homem espiritual", ou mesmo "um espiritual" e no plural "pessoas espirituais".
Consolatio, Solatium, Solamen, consolação.
A palavra portuguesa perdeu seu antigo vigor. Tornou-se "sentimental". Na falta de um termo que exprimisse melhor o que designavam com ele os antigos, especialmente o autor da Imitação, conservei a palavra "consolação" e às vezes (especialmente com solatium) "apoio". Seja-me permitido restituir-lhe aqui a autenticidade de sua significação espiritual: é tanto mais importante pelo fato de que todo o terceiro Livro tem o título "A consolação interior".
A "consolação espiritual" não é em primeiro lugar o que "consola", mas o que "consolida". Manifesta a autenticidade de uma vida espiritual, dando-lhe de certa forma o selo divino. Por "consolação espiritual" não se entende pieguice. Pelo contrário. A consolação se situa no plano da fé e às vezes pode coexistir com uma forte aridez espiritual. A única verdadeira "consolação interior" vem de Deus. Outro é o caso do que A Imitação chama "consolações exteriores", que consistem numa busca de compensação sensível para os duros combates da vida espiritual, compensação que é encontrada nas coisas, nos bens deste mundo ou nos homens: grave ilusão, muito moderna no coração de nossa sociedade de consumo, que denota um enfraquecimento da vida espiritual e abre a porta a muitos abandonos.
Compunctio, compunção.
Quem ainda sabe o que esta palavra significa? Quem sabe pelo menos que ela existe? Quem é que, ao ouvi-la, não sente vontade de rir? Contudo, designa uma atitude espiritual fundamental e de grande valor, que consiste em permanecer em sentimentos de humilde contrição. Sempre traduzi esta palavra por "a humilde contrição".
Patiens, paciente, Patientia, paciência.
Mais uma palavra cujo sentido foi se enfraquecendo progressivamente. Na origem, a paciência é a qualidade daquele que sabe suportar o sofrimento, como se diz de um doente que é um "paciente". Hoje, "paciente" designa aquele que sabe simplesmente "esperar sem irritação", o que antigamente era designado com o termo longanimitas, "longanimidade". É preciso devolver à palavra "paciente" ou "paciência" boa parte de sua força originária, no texto da Imitação, onde com frequência corresponde ao verbo pati, suportar, sofrer (de onde deriva a palavra "paixão").
Sacramentum, sacramento.
Com esta palavra, A imitação designa o que a geração precedente chamava de "o Santíssimo Sacramento", ou seja, a Eucaristia. Preocupado com a clareza e levando em conta que a palavra "sacramento" conserva certa ambiguidade, preferi a palavra "Eucaristia", amplamente utilizada hoje.
Amados irmãos, como essa introdução é importantíssima!
Na primeira introdução vimos o fundo histórico e a importância e agora vimos A Imitação mais por dentro e suas expressões principais.
A partir do próximo post vamos adentrar ao texto da Imitação de Cristo e o vídeo do Frei Gilson comentando o trecho correspondente.
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